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CIBERIDENTIDADES
 Deise Juliana Francisco
 
 Quanto mais os telescópios forem aperfeiçoados, mais estrelas surgirão. 
(Gustave Flaubert)
 

O trabalho seguirá a discussão sobre a questão das identidades fixas, do impacto social contemporâneo em categorias como espaço e tempo, culminando com a discussão sobre as identidades engendrada em tempos informáticos, ou as chamadas ciberidentidades.   

A temática de ciberidentidades faz parte das discussões dos estudos multiculturais. Nesta forma de interpretar fenômenos sociais, há uma marcada característica de desnaturalização, tanto de ordens discursivas que há muito tem sido colocadas como fatos sociais, como realidades biológicas, de classe, etc. Outra característica destes estudos é a continuada ampliação de temas de análise. Alguns destes, já trilhados por estudiosos/as americanos/as, anglo-saxões/ãs, jamaicanos/as, etc. são sobre cultura, gênero, raça/etnia, nacionalidade, ...   

Um dos centros de discussões está colocado na idéia de identidade. Para além da idéia de uma identidade gestada no discurso moderno, baseada em territorialidades (emergência do estado-nação), em concepções de indivíduo racional (racionalidade cartesiana e kantiana), de classificações humanas (em classes, em gêneros, em geração, em nacionalidade, dentre outras) os analistas desta escola multiculturalista propõe um conceito de identidade diferenciado.   

Porém, há muitos estudos que já vinham sendo desenvolvidos, desde a modernidade mesma, que questionavam ao mesmo tempo em que configuravam estes pressupostos. Pois não é desta época histórica a intencionalidade de crítica? Veja-se a obra de Emmanuel Kant - críticas à razão -, a obra de Descartes - crítica ao "sujeito divino"-, a obra de Francis Bacon - crítica à forma de conhecimento - dentre tantos outros. Posteriormente, com Hegel, com Marx, as críticas continuaram, ainda concebendo o sujeito como fonte de possibilidade e de gestão de toda sociedade sim, porém, outros autores, começaram a questionar este homem poderoso, dono de si. Exemplos radicais desta reflexão são Nietszche e Heidegger. Assim, a ruptura que os estudos multiculturais propõe diz respeito, para além deste sentido já estudado por outros, à interlocução com a cultura, tendo questionado a linguagem e a mídia enquanto formadores de identidades e colocando-se em foros de decisão e de discussão política. Assim, o recorte é marcado pela militância política.    

Usualmente nos confrontamos, ao termos contato com a literatura, com, no mínimo, dois termos referentes ao ser humano. Estas palavras são, desde sua designação, nominações ou recortes que têm sua existência epistemologicamente determinada. Desta forma, sujeito e indivíduo, são conceitos freqüentemente encontrados, dos quais derivam as denominações subjetividade e individualidade ou identidade.    

A etmologia da palavra sujeito advém de sub + etno: em baixo, situado. Inicialmente é um termo referido à substância das coisas materiais, ao mundo objetivo e não ao sujeito. Atualmente, porém, sujeito faz sentido em oposição a objeto, remetendo à idéia de substância - o que está por baixo. Desta forma, remete a uma concepção essencialista, a uma noção de interioridade. A noção de subjetividade, advinda de sujeito refere-se a sentimentos, à interioridade em oposição ao mundo objetivo e aos outros sujeitos.   

Indivíduo diz respeito ao que é indivisível, a última parcela social indivisível, compondo-se em oposição à idéia de sociedade. Neste sentido, este conceito adquire sentido no deslocamento da sociedade para o homem. A identidade, em conseqüência, é o que mais ressalta o aspecto grupal e coletivo da formação do indivíduo, opondo-se à similaridade com outros indivíduos e à diferença dentro do grupo. A ação política na identidade ganha centralidade.   

Segundo Stuart Hall (1992), o conceito de identidade, no período da pós-modernidade, está em posto em xeque. O autor questiona os estágios que imprimiram uma versão particular do ‘sujeito humano’ - com certas capacidades humanas fixas e um sentimento estável de sua própria identidade e lugar na ordem das coisas na modernidade e como esta versão está sendo ‘descentrada’ na modernidade tardia. Neste sentido, cita autores diferentes como Giddens, Harvey e Laclau que abordam as mudanças ocorridas no mundo chamado convencionalmente de pós-moderno, concordando que a descontinuidade, a fragmentação, a ruptura e o deslocamento são características deste momento histórico de final do século XX. Hall aponta, nesta mesma linha de raciocínio, que a identidade moderna é descentrada, ou seja, é deslocada ou fragmentada, havendo uma perda do sentido de si como um elemento estável e um descentramento do sujeito de seu lugar no mundo e com relação a si mesmo.    

No terreno de embate de identificações rivais e deslocantes a subjetividade tornou-se politizada, tratando-se, então, da política da diferença.   

No Iluminismo, porém, esta idéia era diferente, havia uma noção de individualismo, assentada em um indivíduo que tinha apoio na tradição e nas estruturas, afastado da "grande cadeia do ser" (da religião) e constituindo-se em soberano.   

Segundo Hall (1992), Raymond Williams traz dois significados de indivíduo: indivisibilidade e singularidade, distintividade e unicidade. Aponta os movimentos históricos que atuaram no sentido de construir esta idéia de indivíduo, a Reforma e o Protestantismo. Tais movimentos teriam libertado a consciência individual das instituições religiosas da Igreja. O Humanismo Renascentista, por sua vez, colocou o Homem no centro do universo e as revoluções científicas conferiram ao Homem a faculdade e as capacidades para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da Natureza. Desta forma, o Iluminismo centrou a imagem do Homem racional, científico, libertado do dogma e da intolerância perante o qual se estendia a totalidade da história humana, para ser compreendida e dominada.    

O sujeito da razão, com o desenvolvimento dos aparatos da modernidade (estado nacional, economia capitalista, por exemplo) tornou-se enredado nas maquinarias burocráticas e administrativas, o que deu base para a constituição da noção sociológica de indivíduo. Esta noção, apoiada nas proposições da biologia darwiniana e nas ciências sociais constituíram um sujeito biologizado e socializado. Assim, a ‘internalização’ do exterior no sujeito e a ‘externalização’ do interior através da ação no mundo social constituem a descrição sociológica primária do sujeito moderno e estão encapsuladas na teoria da socialização (Hall, 1992, p.12).   

Estas noções foram se deslocando com algumas contribuições teóricas. Neste sentido, tiveram efeito as críticas de Freud ao sujeito psicológico, as críticas da razão instrumental da escola de Frankfurt e as críticas da filosofia da linguagem ao sujeito constituinte de sentido.   

Seguindo a argumentação de Hall, podemos apontar algumas rupturas tanto em nível teórico quanto político que possibilitaram o surgimento da idéia de identidade enquanto algo não definível, não fixado. Inicialmente, podemos colocar a tradição do pensamento marxiano, com a idéia de que não há uma essência universal do homem e que essa essência não é atributo de cada indivíduo singular. Posteriormente, com a crítica que o inconsciente freudiano instaurou, colocando a noção de que existe um sistema que preexiste ao sujeito, que há um outro da razão que produz efeitos, ou seja, o recorte freudiano aponta que o inconsciente produz efeitos que o consciente - lugar da razão - não controla. Além disso, Michel Foucault, com seus trabalhos sobre a genealogia do sujeito moderno e com a idéia de disciplina, de poder/saber que transforma-nos em corpos dóceis aponta para o engendramento histórico-social do ser humano que é, através de vários dispositivos, transformado em sujeito. Em nível político-social, marca-se o impacto do feminismo. Este movimento opunha-se ao individualismo, apelava para a identidade social dos sustentadores dos movimentos de "minorias" (mulheres, gays e lésbicas, negros), instaurando, desta forma, o momento da política da identidade - uma identidade por cada movimento social. Questionando a distinção entre dentro e fora, entre privado e público, proclamou o slogan: o pessoal é político. Assim, houve um movimento de politização da subjetividade, abrindo a questão das diferenças que existem para além da sexual - incluindo-a, obviamente, neste processo.    

Filiado ao movimento feminista, a idéia de identidade cultural baseia-se em um sistema de representação cultural, na idéia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu poder de gerar um sentimento de identidade e lealdade (Hall, 1992, p.20) Esta cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua vernacular como o meio dominante de comunicação em toda a nação, criou uma cultura homogênea e manteve instituições culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema educacional nacional.    

Uma ruptura na forma de apreender a linguagem é formulada pelos teóricos do multiculturalisnmo quando afirmam que a cultura nacional é um discurso. Ou seja, na concepção de linguagem não mais enquanto representação, mas sim como construção de sentidos. Podemos, aqui, a fim de elucidar a virada analítica que se dá neste processo de ruptura colocar as questões que Hall enuncia a fim de circunscrever o campo da identidade nacional:    

  1. Como é imaginada a nação moderna?
  2. Que estratégias representacionais são acionadas para construir nossas visões de senso comum do pertencimento ou da identidade nacional?
  3. Quais são as representações, digamos, de "Inglaterra", que dominam as identificações e definem as identidades do povo "inglês"?
  4. Como é contada a narrativa da cultura nacional?
Para responder estas questões, o autor reporta 5 elementos principais:   
  1. a narrativa da nação que parte de histórias veiculadas que dão sentido à idéia de nação;
  2. ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade;
  3. tradição inventada que compõe-se de um conjunto de práticas, de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado;
  4. mito fundacional que tenta colocar a nação como única, quando esta é formada por vários povos e culturas;
  5. povo ou folk puro, original.
Esta rede discursiva constrói identidades que são colocadas de modo ambíguo entre o passado e o futuro, de forma anacrônica, da mesma forma que se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade. Um exemplo citado desta estratégia foi o que Margaret Tatcher afirmou, a fim de, olhando para o passado, para as glórias, imprimir um movimento em direção ao futuro, à modernização. Desta forma, os princípios de unidade de uma nação são a posse em comum de um rico legado de memórias e o desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar.   

A constituição da cultura nacional se dá através da unificação, longo processo de conquista violenta, pela supressão da diferença cultural. Além disso, as nações são sempre compostas de diferentes classes sociais e diferentes grupos étnicos e de gênero e partem de uma hegemonia cultural sobre as culturas dos colonizados.    

A partir destas colocações, a proposta constitui-se em pensar as culturas nacionais enquanto um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade que se forma através do exercício de diferentes formas de poder cultural e não como um sistema unificado. Além disso, os fatos sociais têm um peso relevante nas teorizações. Desta forma, é importante atentar par o que vem acontecendo nos últimos anos deste século XX.   

No momento histórico em que vivemos, o fenômeno da globalização está se espraiando e fazendo parte de nosso cotidiano (Canclini, 1995). Este se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado (Hall, 1992, p. 28). Este é apontado como um fenômeno próprio do modernismo e do capitalismo, que foram marcados desde o início por movimentos de expansão e de abarcamento. O autor cita três possíveis conseqüências do processo de globalização:   

1. as identidades nacionais se desintegram, como resultado do crescimento da homogeneização cultural e do "pós-modernismo global";   

2. as identidades nacionais e outras identidades "locais" ou particularísticas são reforçadas pela resistência à globalização;   

3. as identidades nacionais entram em declínio, mas novas identidades - híbridas - tomam seu lugar.   

Na era da globalização, fala-se em identidades compartilhadas, como consumidores dos mesmos bens, clientes dos mesmos serviços, públicos para as mesmas mensagens e imagens, ao mesmo tempo em homogeneização cultural - "supermercado cultural". Desta forma, no interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais que até então definiam a identidade ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas (Hall, 1992, p.32).   

As possibilidades do efeito da globalização podem ser vistos como: (a) o fortalecimento de identidades locais na forte reação defensiva daqueles membros dos grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas que prega uma identidade una, que filtre as ameaças da experiência social (racismo cultural); (b) a re-identificação com as culturas de origem com a construção de fortes contra-etnicidades, como, por exemplo, o revival do tradicionalismo cultural, da ortodoxia religiosa e do separatismo político; (c) produção de novas identidades como, por exemplo, o black que congrega pessoas diferentes - comunidades afro-caribenhas e asiáticas, por exemplo, no contexto britânico - que são tratadas como se fossem a mesma coisa, tem, portanto, como eixo comum de equivalência a exclusão.   

Nesta altura do texto, Hall define a palavra Tradução, remetendo a sua etimologia latina que significa transferir, transportar entre fronteiras. Assim, através deste conceito podemos pensar as identidades, como migrações, como entre identidades, como entre linguagens, como entre culturas, como necessidade de tradução e de negociação entre instâncias.   

Em suma, uma das estratégias utilizadas pelos/as analistas multiculturalistas é a epistemológica, de dar visibilidade ao movimento histórico em que os conceitos foram engendrados e desconstruir as palavras que os nomeiam. Uma certa forma de ver estes processos é atravessada pela perspectiva foucaultiana de perceber as construções histórico-sociais como construções regidas por relações de poder e que, portanto, são construções problemáticas.    

Um aspecto central para explicar a contemporaneidade é a compressão espaço-temporal, a aceleração dos processos globais, de forma que se sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre as pessoas e lugares situados a uma grande distância. Já que todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos, elas também sofrem o efeito desta compressão espaço-tempo. Giddens (1995) reforça esta idéia quando afirma que a modernidade separa, cada vez mais, o espaço do lugar, ao reforçar relações entre outros "ausentes", distantes (em termos de local), de qualquer interação face-a-face (p.18).   

Da mesma forma, Virilio, autor francês que discute a sociedade contemporânea, afirma que O importante não será mais durar, será 'gozar' - a qualidade da vida dependerá da intensidade do instante e não da estabilidade da duração (1990, p. 95). Nas discussões sobre o quanto o tempo está tomando conta de referências geográfico-topológicas, chega a cunhar a expressão cronopolítica como contraponto à política do espaço e da cidade. Ainda coloca a importância do deslocamento, cada vez mais acelerado que, paradoxalmente, traz o sujeito ao mesmo ponto de partida.   

Estes pontos iniciais servem para circunscrever alguns dos pólos do caleidoscópio que estamos utilizando para pensar, então, sobre as identidades, ou, em outras palavras, sobre as formas de ser e de habitar estes tempos pós-moderno.    

Alguns teóricos podem nos acompanhar nesta caminhada de interrogações sobre o ser cibernético. Assim, proponho uma breve incursão na obra de pensadores tais como Pierre Lévy e Paul Virilio.   

Na página 25 de As Tecnologias da Inteligência, Lévy elenca os princípios de um hipertexto que são, rapidamente, os princípios de metamorfose, de heterogeneidade, de multiplicidade e de encaixe das escalas, de exterioridade, de topologia e de mobilidade dos centros. Estes elementos apontam, na visão de Lévy, aspectos que estariam interferindo na constituição de novas subjetividades. No que, então, a informática - inicialmente, apenas um processo de tratamento da informação - viria a contribuir para alterações na forma de ser e de viver dos humanos? A relação com o espaço, com o tempo e com o saber são pistas que o autor aponta para pensar as ciberidentidades. Para além disso, se pergunta:    

o que acontece com a distinção bem marcada entre o sujeito e o objeto do conhecimento quando nosso pensamento encontra-se profundamente moldado por dispositivos materiais e coletivos sociotécnicos? Instituições e máquinas informacionais se entrelaçam no íntimo do sujeito. Quem pensa? É o sujeito nu e monádico, face ao objeto? São os grupos intersubjetivos? Ou ainda as estruturas, as línguas, as epistemes ou os inconscientes sociais que pensam em nós? (1995, p.10). Neste sentido, podemos lançar mão das propostas de Lévy para repensar o próprio conceito de tecnologia. Simon (1995) partilha de alguns dos pressupostos de Lévy e aponta que a tecnologia diz respeito a formas de práticas constituídas no interior de formas particulares de conhecer e fazer (p.70). Estas práticas são concretizações de um conjunto de procedimentos, de mecanismos e de técnicas, ampliando a idéia de tecnologia para incluir a produção de formas materiais, sociais e espirituais; noções que assumem um caráter prático, pragmático em sua própria articulação de poder cultural. Contra, portanto, a idéia mais corrente de conceituar a tecnologia por oposição a tudo aquilo que possa estar contido numa suposta natureza humana. Esta idéia de tecnologia, portanto, está em consonância com os referenciais multiculturais de identidade como algo não fixo e mutável. Da mesma forma que acontece com as identidades, a tecnologia também é algo que se torna naturalizado. Um exemplo disso é o fato de que dificilmente pensamos que a roupa que vestimos, que o quadro negro e o lápis que utilizamos para escrever sejam tecnologias. Eles fazem habitam nosso cotidiano de tal forma que já fazem parte de nossa "natureza humana". Com Lévy podemos pensar a tecnologia como "tecnologias da inteligência". Estas se articulam com nosso sistema cognitivo de tal forma que não conseguimos pensar sem seu auxílio.    

Para o autor, as tecnologias transformam os modos de conhecer principalmente por duas razões. A primeira delas é por mudarem os agenciamentos interativos entre as pessoas: se as formas de interagir de determinada cultura são preponderantemente orais, elas tornam necessários agenciamentos espaço-temporais próximos; com a possibilidade da escrita, porém, é possível que as informações possam circular com uma distância espaço-temporal. A outra razão é que as tecnologias fornecem metáforas para pensar, constituindo-se como dispositivo técnico através do qual percebemos o mundo. Por exemplo, o conceito de máquina possibilitou a construção de um modelo de aparelho psíquico baseado nas idéias de a energia, de repressão, etc.    

Nesta mesma linha de constatações, Lévy aponta um distanciamento entre as discussões e a evolução técnica. Por exemplo, os projetos de manipulação genética ou mesmo sobre o desenvolvimento de armamentos (como bem aponta Virilio) ficam restritos a guetos científicos, alheios à discussão ética sobre seu uso. Para entender esta "tendência", Lévy propõe uma razão histórica: a filosofia política e a reflexão sobre o conhecimento teriam se cristalizado em épocas nas quais as tecnologias de transformação e de comunicação estavam relativamente estáveis ou pareciam evoluir em uma direção previsível. Outro aspecto é que os processos sociotécnicos não estão sob jugo da coletividade, sendo este um ponto fundamental a ser alterado se quisermos caminhar em direção à tecnodemocracia. Um desses caminhos seria a informatização das empresas, a criação de rede telemática e a "introdução" dos computadores nas escolas. Estes fatos dariam margem a múltiplos conflitos e a necessárias negociações nos quais a técnica, a política e projetos culturais, misturando-se de forma inextrincável, encaminhariam discussões e... a tecnodemocracia (Lévy, 1995).   

Virilio, questiona-se sobre os caminhos da técnica em nossa sociedade e propõe um trabalho radical de questionamento da relação com a tecnologia. A este trabalho designa o termo epistemo-técnica. Compara-o, metaforicamente, às primeiras pesquisas sobre cadáveres, sobre a morte, ou seja, penetrar no funcionamento atual da tecnologia é, desde já, inquiri-la. Uma das conseqüências de tal ato seria a alteração da relação entre a duração e a tecnologia. A grande questão de Virilio, a meu ver, está baseada nos efeitos que as criações humanas estão tendo em nossa vida cotidiana, efeitos imperceptíveis. Ele parte, em Guerra Pura (1984), da discussão sobre o efeito que as tecnologias de guerra tiveram sobre a sociedade civil: centramento das reservas e do capital dos estados em armamento, disseminação da população no espaço (os abrigos nucleares), desurbanização, morte do civil, entre outros fatores. Diz ele que, em nome da defesa, desintegra-se o território, gera-se a desurbanização, as relações econômicas se dissolvem, as relações sociais perdem seu espaço e os homens ficam cada vez mais desorientados e sós. O estado de derrota do ser é inevitável neste contexto. Uma de suas preocupações constantes diz respeito à aceleração do tempo, fato que apontamos no texto anteriormente. Com a tecnologização (telecomunicações, por exemplo) o tempo transcorrido é a medida: a unidade de medida são distâncias em tempo (op.cit.:109), é a cronopolítica, ou seja, a administração dos sistemas temporais através da tecnologia ou, ainda, a distribuição do tempo. A tecnologia acelera o tempo, diminui distâncias, conecta regiões do mundo, dando a impressão de onipresença no espaço. Portanto, a unidade do mundo passou do espaço para o tempo: Estamos nos encaminhando para uma situação em que cada cidade estará no mesmo lugar - no tempo. Haverá uma espécie de coexistência e provavelmente não muito pacífica entre as cidades que mantiveram a sua distância no espaço, mas que terão trombado no tempo (op.cit.: 64).   

Segundo Lévy, Virilio é um autor catastrófico, o qual não percebe que pode haver apropriações diferenciadas, caminhos outros que a humanidade trilhará. Porém, Virilio pensa sobre o que já aconteceu (acidentes tecnológicos) e sobre o que poderá vir a acontecer. Assim, a meu ver, o embate é entre uma posição mais positiva, de aposta e outra de receio. Não chego a dizer que seja o embate entre os futuristas e os saudosistas, porque Virilio não nos diz para voltarmos as cavernas, nem para, apesar da existência de Boing, andarmos a pé, o que o autor aponta é a necessidade de pensarmos sobre os encaminhamentos.    

Virilio traz outro aporte interessante que é o fato de que as tecnologias tiveram seu grande boom na época das guerras, sendo que o computador foi criado inicialmente para calcular a "mira" das bombas. Teria permanecido alguma coisa deste estado inicial?   

Tais autores/as partilham, em maior ou em menor medida, da idéia de um "acoplamento" entre coisas (máquinas, equipamentos, etc.) e humanos/as. Desta forma, aproximam-se da idéia de cyborg. Ser meio homem, meio máquina, que povoa o imaginário. Mais radicalmente, Donna Haraway discute este conceito de cyborg. Expõe esta figura como um transgressor de fronteiras que, vivendo entre dois mundos, naturais e fabricados, é desterritorializado, desnaturado. Esta figura, para a autora, situa-se originalmente fora das separações entre sujeito/objeto e, como filhos ilegítimos do militarismo e do capitalismo patriarcal, isso para não mencionar o socialismo de estado (Haraway, 1996, p. 2) são infiéis a sua origem, dispensando completamente os pais. A tentativa é a de instaurar um campo de ruptura entre as imagens já arraigadas de cisão entre o humano e o animal, entre organismo e máquina, entre físico e não-físico. Neste sentido, as produções de Lévy parecem se aproximar, quando este define ecologia cognitiva como um amálgama de humanos e de coisas.    

Cyborgs seres ubíquos e invisíveis, seres transgressores de fronteiras, para além de todas as reificações modernas, das totalidades teórica, prótese constitutiva.   

As colocações de Haraway são potentes e afirmativas. Green e Bigun (1995) relativizam a força da existência de cyborgs "tão genuínos", porém não deixem de apontar os fenômenos de hibridização e de movimentos de transgressão de algumas fronteiras, como a corpórea, a imagética, a de tempo. Neste sentido, haveria uma nova geração de seres (estudantes), partilhando de pressupostos e de referências espaço-temporais diferenciadas de seus/suas professores/as, pais, companheiros/as de outras gerações. O fosso de separação é tido pelos autores como tão profundo que demarcaria uma total estranheza dentre os dois elementos pertencentes, cada qual a um lado da fortaleza medieval. De um lado, habitantes do século real, de outros os do século virtual.    

As teorizações que trouxemos neste pequeno ensaio apontam para uma novas formas de engendramento de identidades móveis, flexíveis, cyborgs, alienígenas, tradutoras de diversos campos... A questão que fica é, como, na segunda-feira de manhã, encarar estas "figuras" na sala de aula.    

À guisa de reflexões sobre ciberidentidades na escola   

Green e Bigum (1995) apontam as dificuldades que a escola encontra em continuar existindo, pois as funções que na modernidade foram gestadas para ela, deslocaram-se, devido a movimentos históricos, para a mídia. Assim, qual é o lugar de sustentação da escola em tempos pós-modernos?   

O que penso a partir desta literatura e influenciada pelos escritos de Virilio é que devemos efetivamente nos debruçarmos sobre a questão da tecnologia - mesmo que não exista a Tecnologia, afastada das ações humanas - fazer o que ele denomina de questionamento epistemo-técnico.   

Um primeiro momento seria trabalhar sobre o imaginário que temos sobre tecnologia. Este é vastamente povoado, contando não só com imagens de objetos úteis, como bem aponta Santos (1995), mas também com imagens de super-máquinas, controladoras, semelhantes ao que mostra o filme de Orwell, 1984. Neste caso, seriam máquinas que viriam a substituir o homem (a infância - videogames, o sexo - sexo virtual, a percepção - realidade virtual, as relações interpessoais - telefone, Internet, redes telemáticas, a lista é infindável). Na escola, parece que este imaginário está à solta, professores/as receosos/as de serem substituídos/as por máquinas. Se bem que, nas fábricas, algo deste gênero já vem acontecendo, fazendo surgir frases como: "necessitamos de um novo trabalhador para o futuro, apto a lidar com a informação e que não dê conta apenas de tarefas repetitivas, rotineiras". De outro lado, retomando a discussão sobre a técnica, Santos aponta questões importantes sobre a relação homem/técnica que podem ser úteis para pensarmos na relação professor/a-computador, especificamente quando o autor enuncia que há uma enorme dificuldade que o homem moderno tem em superar a relação senhor-escravo que mantém com a máquina. Com efeito, parece que o homem não consegue abandonar essa espécie de braço-de-ferro que tem jogado com os objetos técnicos (1995, p. 47).   

Pensar na escola a partir do recorte de ecologia cognitiva, da "nova" ecologia cognitiva informática é difícil, pois percebemos que a escola manipula com a informação, basicamente com a transmissão da informação. Essa é uma idéia para entender a rejeição que alguns professores/as demonstram quando lhes é proposta a possibilidade de trabalhar com computadores em sua prática pedagógica. De alguma forma, principalmente com a Internet, a escola da informação fica em xeque. Mas esta é uma questão a ser re-pensada, pois com a Internet haveria a facilitação de um processo. O papel da escola, do professor numa instituição que utilizasse a informática, não seria tanto o de divulgar as informações, já que, para isso, dispomos de outros meios com eficiência superior, mas seria sim o de possibilitar o conhecimento. Neste sentido, não existiria a necessidade de uma competição com os novos recursos da informação, mas sim a descoberta, a construção de modos criativos de conhecimento usando múltiplas e variadas modalidades de informação já disponíveis.    

Outra hipótese é sobre a forma como pensamos a tecnologia. Aqui, no Brasil, era comum a alguns anos atrás ouvirmos pessoas comentando que não utilizariam computadores porque eram máquinas dos EUA, dos opressores. Uma das marcas que não podemos esquecer é esta. Tanto que, quando foi proposto o projeto de informatização de escolas pelo governo federal em 1983 (projeto EDUCOM) a preocupação era com a produção de softwares nacionais. O intuito desta medida era barrar o processo de subjugação que a ideologia americana ou de outros países poderia efetivar sobre estudantes brasileiros/as. Por outro lado, o viés que sustentava esta proposta era o de modernização da sociedade brasileira - uma grande e, porque não dizer, excessiva responsabilidade para um simples microcomputador e para os/as que o utilizassem!   

À guisa do que coloca Hall sobre o conceito de tradução - mesmo que o conceito tenha sido engendrado sobre identidades nacionais - parece que haveria uma necessidade da escola fazer trabalhos de tradução entre sua cultura moderna e a cultura pós-moderna de seus/suas alienígenas. Parece que o lugar da escola é entender e problematizar, à moda do trabalho epistemo-técnico ou tecnodemocrático, a era pós-moderna e as identidades que aí estão sendo engendradas por diversas agências. Finalmente, como colocam Green e Bigum    

educacionalmente, somos levados a avaliar o nexo cada vez mais importante entre a cultura da mídia e a escolarização pós-moderna, bem como os movimentos em direção à informatização e à tecnologização do currículo, tais como os que já são aparentes em nossas escolas e em nossa política educacional atual. Como educadores/as, devemos avaliar aquilo que já está ocorrendo em nossas salas de aula, quando soa/s alienígenas entram e tomam seus assentos, esperando (im)pacientemente suas instruções sobre como herdar a terra Uma das possibilidades apontadas pelos autores acima citados é com relação à entrada de microcomputadores na escola. Porém, alguns interrogantes permanecem, no sentido mesmo em que vinha apontando no texto, com relação à naturalização e ao imaginário de imposição: temos que fazer uso de computadores na escola para que ela acompanhe os tempos pós-modernos. Desta forma, seria importante pensar    
  • quando da entrada de computadores no cotidiano escolar, qual será sua recepção? para além da simples aceitação ou rechaço, qual será a imbricação da IE no cotidiano escolar? Tendo em vista o processo de naturalização da tecnologia, de sua presença impensada em nosso meio, qual será a possibilidade da escola pensar sobre sua introdução. Seria possível a realização de um trabalho epistemo-técnico na escola? 
  • Pode-se pensar que a escola, enquanto instituição capitalista, está perpassada pela lógica de que "tempo é dinheiro". A velocidade e a economia de tempo já se fazem presentes em seu repertório de expectativas. Pergunta-se, então, em que medida a introdução do computador - um veículo em geral associado às possibilidades de economia de tempo produziria um incremento e potencialização na lógica subjetivantes da corrida, da aceleração do tempo e da instantaneidade? Que efeitos isto provocaria nos modos de ser e de trabalhar escolares? 
  • concebendo a IE enquanto dispositivo ecológico, no sentido em que Lévy fala, quais os efeitos de seu imbricamento na lógica institucional?
Estas são algumas das questões que podem ser feitas a partir das idéias trazidas pelos autores. A grande questão é perceber o quanto tais teorizações podem contribuir para refletir sobre o que está acontecendo na instituição escolar quando da introdução de novas tecnologias em seu cotidiano. Haveria trabalho epistemo-técnico, tecnodemocracia na escola?   

Finalizando, tomamos a fala de Isabel Brasil Pereira (1996) quando afirma que    

sendo a cultura técnica ligada à informática um campo muito recente, em rápida mutação, a formação de quadros qualificados não é um processo linear e rápido. Sobretudo, não se deve ter a ilusão de que a tecnologia educacional, incluídos os computadores, seja uma panacéia universal, capaz de resolver todos os problemas da Educação. Não havendo projeto político, recursos materiais, e investimentos qualificados, a face "arcaica" da Educação no Brasil tende a se reproduzir e aponta questões importantes da entrada de microcomputadores na escola brasileira.   

Referências bibliográficas   

CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995.   

GIDDENS, A. Modernidad y identidad del yo. El yo y la sociedad en la época contemporánea. Barcelona: Península, 1995.   

HALL, Stuart. A questão da identidade cultural. In: Stuart Hall; D. Held & T. McGrew (orgs.). Modernity and its futures. Cambridge, Polity/Open University, 1992: pp. 274-316 (Tradução: Guacira Lopes Louro e Tomaz Tadeu da Silva).   

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16/05/1998